
Nosso glossário é fruto de um processo de trocas e criação em que nos inspiramos em autoras e autores e seguimos com a liberdade de reinventar conceitos para que façam sentido no contexto da nossa intenção de apoio-investigação. Todas as referências originais estão nos verbetes.
Encruzilhada: Lugar de chegada que dimensiona o caminho como potência e como algo inacabado. A encruzilhada tem por princípio a dúvida e traz o corpo para o centro, com o humano integrado à vida nas suas mais diferentes formas e em coexistência. Referência: Luiz Rufino.
Assentamentos: O que chamamos de assentamento são as palavras de força que nos unem: respirar, (co) mover e (re) existir. Aos nossos assentamentos se conectam os autores e as práticas que irão nos orientar durante a realização do projeto.
Sentidos: Na sociologia, a noção de sentido tem a ver com o entendimento de que a interação com o mundo e com os outros é dotada de intenção e significações construídas intersubjetivamente. São os sentidos, portanto, que conformam a existência – pensamentos, práticas e relações – de alguém do mundo. Referência: Max Weber
Outros sentidos: Para nós, a produção de outros sentidos envolve a criação de pausas e silêncios para que se possa surgir o novo e reorganizar o antigo. É preciso uma ruptura intencional no fluxo dos acontecimentos para acolher o que não estava previsto e o que não fora formatado. Hoje, alguns artistas, criadores e experimentos coletivos já sustentam essa prática ao produzir outro ritmo, outra respiração, outros vazios e outros silêncios em busca de algo possa fazer sentido novamente. Referência: Peter Pál Pelbart
Encantar: Para nós, encantar é política de vida e prática metodológica. Prática de identificar e construir saberes retomando as conexões ancestrais perdidas com o assombro da colonização; de visibilizar e aprender com as vidas que resistem e (re) existem nas frestas; e de construção de um conhecimento coletivo a partir da consideração ativa e consciente de todas as formas que habitam a biosfera, do visível e do invisível e dos diferentes espaços-tempo. No projeto, chamamos de “encantamentos” a nossa metodologia, entendendo que encantar é a insistência em criar sentidos para o mundo que transgridam o hegemônico. A metodologia como encantamento implica na escolha do que olhar e como olhar. Se estamos tão habituados a partir de autores, categorias e conceitos, façamos diferente: partamos do que importa e, a partir daí, tracemos conexões. Referência: Luiz Antônio Simas e Luiza Rufino
Apoio-investigação: Orientação criada no âmbito do Projeto Respiro que emerge da colocação do trabalhador no centro dos nossos pensamentos e práticas. Ao traçar conexões entre o trabalhador, em sua totalidade, e o mundo; e entre o trabalhador e nós, o olhar profundo e interiorizado sobre essa relação traz à nota a indissociabilidade entre “conhecer” (investigar) e estar junto (apoiar). O projeto respiro parte do pressuposto que uma relação de apoio só é possibilidade através do olhar atento sobre mim e sobre o outro.
Relacionalidade: O conceito de relacionalidade está associado à aceitação da precariedade e da vulnerabilidade como ontologia da vida. Para Judith Butler, toda vida é naturalmente precária e precisa do esforço coletivo no sentido da manutenção de suas condições para existir. Contudo, a história da humanidade é marcada pela negligência em relação à manutenção de vida e pela agudização da precariedade e vulnerabilidade de alguns grupos. Daí surge a distinção entre as vidas vivíveis, aquelas passíveis de reconhecimento e de luto, e as vida matáveis, cuja existência pretende-se apagar. O conceito de relacionalidade tem a ver com a afirmação de que todas as vidas são precárias e existem necessariamente em interdependência uma das outras. Nesse sentido, a reconstrução de um sentido para o mundo viria, portanto, de uma nova ética fundada no reconhecimento da vulnerabilidade e da interdependência entre nós.
Mandala Respiro: Forma gráfica dos nossos assentamentos em relação aos grupos de trabalho; inspiradores; bolsistas e demais membros. Material apresentado na I Jornada.
Flor de Lótus: Forma gráfica que coloca o trabalhador no centro de nossos pensamentos e práticas e, a partir daí, traça conexões entre ele e as questões dos grupos de trabalho.
Organicidade: No âmbito da organização interna do Projeto Respiro, a noção de organicidade expressa a intenção e o cuidado de garantir que todos os grupos de trabalho estejam harmonizados internamente e uns com os outros, a fim de garantir a reunião em torno dos assentamentos e a não segmentação definitiva por questões específicas. Somos nós, parte de nós e nós juntos de novo. Em relação ao trabalhador, a organicidade é ao mesmo tempo uma condição e um objetivo a ser alcançado para que no escopo das interações sejam tratadas questões insurgentes a partir da vida e ao cotidiano dessas pessoas.
Terreiro: Espaço tempo em que os saberes são praticados. Referência: Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino.
Partilhas: Termo que designa as interações (rodas de conversa, grupos de estudo, postagens, entrevistas etc.) dos pesquisadores do projeto com os trabalhadores. São também acabamentos transitórios, dinâmicos, plurais, incompletos, inacabados, passíveis e “possíveis de serem lidos, enunciados e praticados em qualquer esquina e dobra desse mundo”. Referência: Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino
Narrativas: Tomamos a narrativa como a busca pela organização de uma sequência de eventos em um todo, de forma que o sentido dos eventos vivenciados e relatados são traçados na relação de uns com os outros. Tecer narrativas pode permitir a uma pessoa a organização de suas experiências enquanto estipula um “senso de si” com continuidade pelo tempo. Como colocam Michael Pollak e Paul Ricœur, ela é um esforço de construção do carácter durável de um ser.
Testemunho: O caráter excepcional/dramático de uma dada experiência pode impactar a identidade e a memória de uma pessoa. O testemunho das experiências vivenciadas, nesse sentido, coloca em jogo a memória e a reflexão de si: “Por isso, os testemunhos devem ser considerados como verdadeiros instrumentos de reconstrução da identidade, e não somente como relatos factuais, limitados a uma função informativa”. Referência: Michael Pollak e Veena Das.
Relato: É uma das formas de expressão da memória, tomada na sua fase narrativa, como coloca Paul Ricœur. O relato e o testemunho são maneiras (parciais) de compreensão dos sentidos dados à relação entre uma violência sofrida, um “evento devastador” e a própria subjetividade. Referência: Veena Das.
Entrevistas compreensivas: trata-se de buscar a compreensão da realidade de uma pessoa entrevistada entendendo-a como depositária de um saber substantivo a ser apreendido por meio de seus próprios quadros de valores. A entrevista compreensiva se destaca pela relação dialógica com o entrevistado e a interação global com o universo em pesquisa. Referência: Jean-Claude Kaufmann.
Luto: Suscintamente, pode ser um processo de dor, de sofrimento e de redescoberta de uma vida (física e emocional) saudável imediatamente após a morte de alguém (familiar, colega ou pessoa sob cuidado) ou de uma grande mudança na estrutura física do próprio corpo (saúde) – trata-se do rompimento com as coisas “como eram antes” e a abertura de uma nova fase. Podem existir diferentes processos de luto a depender das características pessoais das pessoas (suas trajetórias) e das posições que ocupam em diversos e diferentes grupos (trabalho, família, comunidade, religião etc.).
Acontecimentos: guinada do ponto de vista; transformação no plano de existência. Instantes privilegiados que rompem a trama do habitual e vibram em profundidade constituindo a promessa de uma existência mais real. Referência: David Lapoujade.
Memória: termo cientificamente empregado de maneiras diversas, podendo estar conectado a diferentes operações da mente. Envolve complexas reconstruções e reconstituições e compreende processos de escolha (não necessariamente consciente, reflexiva e/ou racional), sendo parcial e seletiva. Logo, os elementos selecionados/guardados nas mentes não reproduzem o passado exatamente, mas são relevantes para sustentar uma interpretação presente de situações vivenciadas: o lembrar é essencial para o que está acontecendo correntemente, é parte de cada ação – “a lembrança é sempre agora”. Referência: Michael Pollak
Interdependência: tudo o que nós experienciamos surge, permanece e desaparece em dependência de uma rede infinita de relações contingentes. Todas as experiências materiais e de consciência se expressam devido à multiplicidade de causas e condições. É porque tudo se apoia que o mundo se move e podemos experimentá-lo. Tudo está em relação, tudo é feito de relações. Uma vez que tudo se apoia não podemos nos separar do mundo que nós experimentamos. Referência: Elizabeth Mattis Namgyel
Agência: possibilidade de os sujeitos produzirem subjetivação diante e apesar da subordinação às normas sociais. Com Foucault herda a noção de assujeitamento que compreende os sujeitos como formados nas relações de poder. E em diálogo com a teoria feminista agência é uma prática de poder fazer a partir do desejo, não sendo assim um atributo dos sujeitos, mas uma conquista. Referência: Judith Butler


Mbembe, Achille. O direito universal à respiração. Insituto Humanitas Unisinos. 17 de abril de 2020.